quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Carta de um seringueiro - 1901

(Luciano Roberto)

O sangue misturado nas águas do Rio Amazonas

Euclides da Cunha (1866-1909), o imortal autor da obra Os Sertões, escreveu o seguinte: "De feito, o seringueiro, e não designamos o patrão opulento, senão o freguês jungido à gleba das “estradas”, o seringueiro realiza uma tremenda anomalia: é o homem que trabalha para escravizar-se"¹. A escravidão havia acabado a cerca de 16 anos, quando o escritor pisou em solo amazonense.

Euclides da Cunha chegou em Manaus em 1904. Foi da sua vivência na Amazônia que escreveu o livro que trás a frase acima, chamado À margem da História.

Euclides da Cunha descreveu como ninguém o sofrimento do seringueiro, do nordestino que aqui chegava e era logo chamado de arigó. 

Muitos nordestinos vieram para a Amazônia na esperança de encontrar uma vida melhor. "Calcula-se que cerca de 300 mil imigrantes teriam provindo do Nordeste entre 1870 e 1920, em diferentes momentos"². Muitos vieram do Ceará, Maranhão entre outros Estados.

Vou relatar uma epístola de um seringueiro em 1901. A carta é apenas uma ficção literária com contexto histórico de minha autoria. A ortografia é do nosso tempo, as perspectivas são tão anacrônicas quanta a distância daquele que escreveu na história, o seu próprio sofrimento: o seringueiro.

Do meio do Seringal, 29 de agosto de 1901.

     Querida mamãe, 

Espero e desejo de todo o meu coração que a Senhora goze de boa saúde. No momento em que escrevo, meus olhos se perdem no infinito do Rio Amazonas. Não sei bem onde estou, só sei que estou no meio do seringal.

Mamãe agradeça a tia Raimunda por ter me ensinado a ler e a escrever. Não sabia que tais habilidades eram tão perigosas. Ler e escrever no seringal é perigoso mamãe. Estou escrevendo escondido. O proprietário do barracão é um português cruel, chama-se seu Oliveira. Engana os seringueiros que têm de comprar os seus produtos.

O barracão é como uma quitanda, é o lugar onde compramos mantimentos para sobreviver,  como jabá, farinha, pólvora e cachaça para espantar a solidão. Aqui, a maioria dos seringueiros bebem cachaça. Eu comecei a beber. O papai não bebia?

Seu Oliveira é um português esperto. Vende fiado para todos os seringueiros, mas na ora de notar na sua caderneta, sempre aumenta. Se comprar um pedaço de jabá, ele anota três quilos. Ninguém reclama, a grande maioria dos seringueiros são analfabetos. E os que sabem ler e escrever, fingem não saber, assim como eu.

O que podemos fazer mamãe? Não há outro jeito de comprar nossos mantimentos. O jeito é comprar fiado no barracão do ladrão português, seu Oliveira. Aliás, até tem um jeito de fugir da exploração do seu Oliveira, que é trocar borracha com o regatão. Os regatões são pequenos barcos de comerciantes que aparecem nas noites escuras, trocando mercadoria por borracha com o seringueiro.

Mas é muito perigoso. Se os capangas do seringalista pegar o serigueiro fazendo negócio com o regatão, pode ter certeza, que é morte na certa. O seringalista mamãe, é o proprietário das terras onde estão as seringueiras.  

Estou exausto mamãe! Por que não escutei a senhora? Por que não fiquei mesmo no Ceará? Com todas as dificuldades que deixei aí, a vida ainda era melhor. Tinha minha terrinha, no tempo de seca era uma miséria, mas no tempo de chuva, via o sertão verdinho. Plantava arroz, feijão, milho, era comida farta mamãe. Quantas saudades!

Mamãe as seringueiras são árvores que choram. Nós, os seringueiros fazemos um corte na horizontal nelas, então desce um líquido chamado látex. O látex passa por um processo de vulcanização e torna-se borracha. A borracha vai para Manaus, uma cidade que está crescendo muito por causa da economia da borracha. Vi outro dia seu Oliveira comentar que os barões da borracha acendem seus charutos com notas de cem mil réis. Será que é verdade mamãe? 

Manaus surgiu no meio da floresta! E aqui estou no meio do seringal! Enquanto uns enriquecem, outros morrem na miséria, como eu mamãe. Nossa vida aqui é dura. As quatro horas da manhã já estamos em pé. Nossas roupas são farrapos. Saímos em pequenos grupos no enorme seringal.

O medo é grande, pois a floresta é cheio de mistérios. Tem onças, mas existem bichos pequeninos que são mais perigosos, como o mosquito da malária. Mamãe já vi cabra macho, com febre alta e tremer de frio. Chorando feito criança, numa rede imunda, até morrer. É triste demais! Eu quero voltar para casa mamãe, mas sinto que nunca mais irei sentir o seu cheiro, seu olhar piedoso e seu abraço acolhedor.

Por que não ouvi a senhora? Ainda escuto a sua voz me dizendo: "Não vai meu filho! Este tal de Amazônia é longe demais! Fique aqui! Já passamos por tantas dificuldades, a pobreza é apenas um jeito de Deus, nosso Senhor, testar a nossa fé". Nunca esqueci suas palavras. 

Mas eu era ambicioso demais mamãe, queria ficar rico. Quando ouvi falar do ouro branco da borracha, não lhe escutei.

Mamãe sei que esta carta não chegará até a Senhora. Perdoe o asno do seu filho. Quando o papai morreu, o sertão também morreu pra mim.

Estou tão triste mamãe. Queria deitar em seus braços agora. Queria que a senhora pudesse ver a beleza do Rio Amazonas. É lindo mamãe! O sol daqui é valente e forte como o sol do nosso sertão.

A peixeira do papai que trouxe comigo, continua afiada feito uma adaga, como ele costumava falar. Acabei de usar ela em meus punhos. O meu sangue corre com as águas do Rio Amazonas, misturam-se e tornam-se apenas um.

Mamãe perdoe o teu filho! Perdoa mãezinha...  





  



Referência:

¹ https://euclidesite.wordpress.com/category/frases/a-margem-da-historia/ (acessado: 17/11/2016).

² FILHO, Raimundo Pereira Pontes. Estudos de História do Amazonas. Manaus: Editora Valer, 2000 (pág.133).

4 comentários:

  1. apesar de ser um texto fictício, como o senhor mesmo falou, é bem próximo da realidade vivida naquela época, em que a umas das principais essências do capitalismo reinava:desigualdade social e exploração do trabalho. Uma nova forma de escravidão, trabalho compulsório. A Manaus da Belle Époque, crescia e esbanja uma riqueza exacerbada. porém riqueza concentrada nas mãos de poucos. em contrapartida, a exploração de muitos era mantida.

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    1. A exploração da mão-de-obra do seringueiro deve ser muito mais explorada pela historiografia local.É preciso que o mundo saiba que este tipo de exploração ainda resiste, com o trabalho escravo, que é uma vergonha do nosso século. Valeu pelo seu comentário!

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  2. Existe historia e "estória". Meu pai foi seringueiro e balateiro. Contava muitas "estória" sobre: cobra grande,sereia,cobra com chifres parecidos os de boi, mula sem cabeça, espírito mal assombrado na floresta. Enfim, outras "estórias".
    Sem essas "estórias" a Amazonia não atrairia "curiosos" para desfrutar desses mistérios de nossa floresta!

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    1. Poxa meu caro, não sabia que o seu foi seringueiro. Isto é motivo de orgulho, pois se Manaus é hoje uma metrópole, charmosa, bonita e rica culturalmente, ela deve ao suor e sangue dos seringueiros. Obrigado pelo comentário!

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