Uma armadura chamada escrita¹
(Luciano Roberto)
O processo de desenvolvimento humano é algo fantástico. Desde a
Pré-História que a humanidade caminha para lugares de
aperfeiçoamento, das cavernas para a construção das cidades, do
alimento cru, à utilização do fogo para melhorar o sabor, e
consequentemente, a sua qualidade de vida. Poderíamos citar diversos
exemplos do avanço da humanidade ao longo da história, entretanto,
destacaremos a criação e dominação da escrita.
A escrita tornou-se uma ferramenta de progressão para a humanidade,
ou seja, utilizada para materializar ideias e conhecimento, que antes
poderiam ser esquecidas, perdidas nas profundezas da memória. Quanto
de conhecimento foi enterrado na história da humanidade? O uso da
oralidade, apesar da sua importância, não tinha e não tem o poder
de conservar o conhecimento, daquilo que podemos chamar na “íntegra”,
como a escrita, que é um objeto de registro das ações, criações
e inspirações humanas. O que pode ser dito agora, pode se perder
daqui a pouco, mas o que é escrito, fica conservado para a s
gerações futuras. A escrita, como uma criação humana, acabou por
também ser criadora, pois o homem ao ser escritor torna-se um
leitor. Surge então uma problemática: o ato de escrever foi criado
junto ao ato de ler? Não existe escrita sem um leitor.
A escrita parece ser algo tão vivo quanto a oralidade, pois ela
sofre alterações ao longo do tempo, penso em uma palavra que
utilizamos frequentemente, que é o pronome “ele”. No século
XIX, escrevia este pronome da seguinte forma “êlle”, já no
início do século XX, tirou-se o acento circunflexo e sua escrita
passou a ser “elle”, neste mesmo século passou a ser escrito
“ele”. Em sua jornada como ferramenta que registra, a escrita
acaba por ser aperfeiçoada pelos homens do seu tempo. Walter Ong
destaca que “as regras gramaticais vivem no inconsciente no sentido
de que podemos saber como usá-las e até mesmo como construir outras
novas sem ser capazes de definir o que elas são”. (ONG, 1998,
p.97).
A escrita tem a complexidade de ser amada e odiada. Entre os
filósofos de grande destaque da Grécia antiga, Platão demonstra
desprezo pela escrita, ao considerar “inumana, pois pretende
estabelecer fora da mente o que na realidade só pode estar na mente.
É uma coisa, um produto manufaturado” (ONG, 1998, p.94). Este
receio em relação ao novo é materializado com a escrita digital do
nosso tempo, que é a grande inovação pela qual a escrita passa
hoje. Certamente que o mundo digital trouxe várias mudanças no
sentido de facilitar a vida contemporânea. Em uma aula do Programa
de Pós-Graduação em História, na disciplina Cultura escrita e
pesquisa histórica, ministrada pela Professora Dra. Adriana
Angelita da Conceição, ocorreu um debate sobre as “facilidades”
que a internet trouxe para o ofício do historiador. Alguns
alunos argumentaram que a internet, revolucionou a
socialização das fontes, isto ocorre quando um determinador
“historiador” - destaco entre aspas por não ser necessariamente
a responsabilidade de um historiador disponibilizar uma fonte na
internet – ao realizar suas pesquisas, permita o acesso das
fontes que utilizou para o desenvolvimento do seu trabalho. Não
existe nada de errado nesta ação, muito pelo contrário, existem
vários sites sérios no mundo digital. O que causa certa
preocupação por esta “facilidade”, é o fato de futuros
historiadores não buscarem as fontes originais. Dar um alto grau de
credibilidade as fontes digitalizadas (que denominei “fontes
prostituídas”), acaba por minimizar a responsabilidade do
historiador, que é de investigar o passado através das ações
humanas. Além de tornar o trabalho de pesquisa algo menos prazeroso.
Imagine encontrar um documento digitalizado do século XIX, em uma
tela de computador, e imagine ter este mesmo documento em mãos,
sentir seu cheiro, seu peso, simplesmente poder tocar. A sensação,
certamente é diferente, e o prazer também.
Não sou contra a tecnologia, a própria escrita é uma forma de
tecnologia, mas historiadores que se prezem ainda devem consultar os
arquivos, buscar as fontes originais. Em relação a tecnologia há
uma fala de Walter Ong onde destaca que “as tecnologias são
artificiais, mas – novamente um paradoxo – a artificialidade é
natural aos seres humanos. A tecnologia, adequadamente interiorizada,
não rebaixa a vida humana, pelo contrário, acentua-a. A orquestra
moderna, por exemplo, é resultado de alta tecnologia. Um violino é
um instrumento, isto é, uma ferramenta. (…) O uso de uma
tecnologia pode enriquecer a psique humana, ampliar o espírito
humano, intensificar sua vida interior. A escrita é uma tecnologia
ainda mais profundamente interiorizada do que a execução de um
instrumento musical. Mas, para compreender o que ela é – o que
significa compreendê-la em relação a seu passado, à oralidade -,
o fato de que ela é uma tecnologia deve ser encarada com
honestidade.” (ONG, 1998, p. 98-99).
A escrita obteve meios para o seu desenvolvimento. A imprensa foi
responsável pela sua divulgação, assim como tornou a escrita
acessível para uma maior quantidade de pessoas. É importante
destacar a Reforma Protestante, que ao desafiar o poder da Igreja
Católica nas primeiras décadas do século XVI, passa a contar com a
escrita para divulgar sua opinião sobre o poderio da Igreja, sua
corrupção e falta de ética de alguns membros do alto clero. Um
belo exemplo são as 95 Teses de Lutero, que foi afixado na porta da
igreja de Wittenberg, simbolizando um manifesto público. Martyn
Lyons comenta que “el protestantismo era la religión del libro.
(...) Los líderes protestantes creían que todos los cristianos
debían tener fácil acesso al mensaje de la Biblia.
(LYONS, 2012, p. 93). Aumentando um número de leitor, aumentaria
certamente a quantidade de publicação de livros, consequentemente a
escrita acabava tendo uma importância maior.
A escrita que liberta e revoluciona, também exclui. É o caso dos
“analfabetos (os quais constituíam a grande maioria da população)
tinham apenas a possibilidade de recorrer a vozes e figuras para se
expressarem autonomamente, ainda que, e mesmo assim, tal não
obstasse a que, (...), tivessem um acesso e um contato cada vez
maiores com o escrito” (BOUZA, 1999, p. 115). Mesmo sem serem
leitores, os analfabetos tinham contato com a escrita. Não desejando
cometer o pecado do anacronismo, percebemos que os analfabetos do
século XXI, convivem com a escrita, é conhecedor do mundo digital,
e mesmo assim, vivem e seguem normalmente suas vidas.
Por outro lado, está se desenvolvendo uma mudança na maneira de
expor a escrita. Em uma entrevista cedida a revista Valor Econômico
por telefone em abril do ano passado , o historiador francês Roger
Chartier, destaca as novas formas de leitura fragmentadas que a
sociedade atual está se acostumando na tela do computador, comenta
sobre o desafio de encarar esta tecnologia como aliada da escrita e
como formadora de novos leitores. Roger Chartier orienta que “a
grande novidade me parece ser que o fragmento não está mais
necessariamente vinculado ao todo. A leitura descontínua não busca
essa relação. E a consequência é que todos os conceitos que
associamos com a leitura, com o livro de filosofia, o de história
etc. estão desafiados pela tecnologia eletrônica”.
Concluímos que a cultura escrita sofreu perseguições nos seus
primeiros passos. A escrita foi extremamente importante para as
transformações sociais ocorridas ao longo dos tempos, sua
utilização foi revolucionária para a humanidade. Tem importância
incalculável, entre as criações humanas, é extraordinária. Uma
armadura chamada escrita, que protegeu e registrou para a história o
conhecimento e as ações dos homens.