sexta-feira, 26 de julho de 2013

Uma armadura chamada escrita

Uma armadura chamada escrita¹
(Luciano Roberto)

            O processo de desenvolvimento humano é algo fantástico. Desde a Pré-História que a humanidade caminha para lugares de aperfeiçoamento, das cavernas para a construção das cidades, do alimento cru, à utilização do fogo para melhorar o sabor, e consequentemente, a sua qualidade de vida. Poderíamos citar diversos exemplos do avanço da humanidade ao longo da história, entretanto, destacaremos a criação e dominação da escrita.

            A escrita tornou-se uma ferramenta de progressão para a humanidade, ou seja, utilizada para materializar ideias e conhecimento, que antes poderiam ser esquecidas, perdidas nas profundezas da memória. Quanto de conhecimento foi enterrado na história da humanidade? O uso da oralidade, apesar da sua importância, não tinha e não tem o poder de conservar o conhecimento, daquilo que podemos chamar na “íntegra”, como a escrita, que é um objeto de registro das ações, criações e inspirações humanas. O que pode ser dito agora, pode se perder daqui a pouco, mas o que é escrito, fica conservado para a s gerações futuras. A escrita, como uma criação humana, acabou por também ser criadora, pois o homem ao ser escritor torna-se um leitor. Surge então uma problemática: o ato de escrever foi criado junto ao ato de ler? Não existe escrita sem um leitor.

             A escrita parece ser algo tão vivo quanto a oralidade, pois ela sofre alterações ao longo do tempo, penso em uma palavra que utilizamos frequentemente, que é o pronome “ele”. No século XIX, escrevia este pronome da seguinte forma “êlle”, já no início do século XX, tirou-se o acento circunflexo e sua escrita passou a ser “elle”, neste mesmo século passou a ser escrito “ele”. Em sua jornada como ferramenta que registra, a escrita acaba por ser aperfeiçoada pelos homens do seu tempo. Walter Ong destaca que “as regras gramaticais vivem no inconsciente no sentido de que podemos saber como usá-las e até mesmo como construir outras novas sem ser capazes de definir o que elas são”. (ONG, 1998, p.97).

             A escrita tem a complexidade de ser amada e odiada. Entre os filósofos de grande destaque da Grécia antiga, Platão demonstra desprezo pela escrita, ao considerar “inumana, pois pretende estabelecer fora da mente o que na realidade só pode estar na mente. É uma coisa, um produto manufaturado” (ONG, 1998, p.94). Este receio em relação ao novo é materializado com a escrita digital do nosso tempo, que é a grande inovação pela qual a escrita passa hoje. Certamente que o mundo digital trouxe várias mudanças no sentido de facilitar a vida contemporânea. Em uma aula do Programa de Pós-Graduação em História, na disciplina Cultura escrita e pesquisa histórica, ministrada pela Professora Dra. Adriana Angelita da Conceição, ocorreu um debate sobre as “facilidades” que a internet trouxe para o ofício do historiador. Alguns alunos argumentaram que a internet, revolucionou a socialização das fontes, isto ocorre quando um determinador “historiador” - destaco entre aspas por não ser necessariamente a responsabilidade de um historiador disponibilizar uma fonte na internet – ao realizar suas pesquisas, permita o acesso das fontes que utilizou para o desenvolvimento do seu trabalho. Não existe nada de errado nesta ação, muito pelo contrário, existem vários sites sérios no mundo digital. O que causa certa preocupação por esta “facilidade”, é o fato de futuros historiadores não buscarem as fontes originais. Dar um alto grau de credibilidade as fontes digitalizadas (que denominei “fontes prostituídas”), acaba por minimizar a responsabilidade do historiador, que é de investigar o passado através das ações humanas. Além de tornar o trabalho de pesquisa algo menos prazeroso. Imagine encontrar um documento digitalizado do século XIX, em uma tela de computador, e imagine ter este mesmo documento em mãos, sentir seu cheiro, seu peso, simplesmente poder tocar. A sensação, certamente é diferente, e o prazer também.

             Não sou contra a tecnologia, a própria escrita é uma forma de tecnologia, mas historiadores que se prezem ainda devem consultar os arquivos, buscar as fontes originais. Em relação a tecnologia há uma fala de Walter Ong onde destaca que “as tecnologias são artificiais, mas – novamente um paradoxo – a artificialidade é natural aos seres humanos. A tecnologia, adequadamente interiorizada, não rebaixa a vida humana, pelo contrário, acentua-a. A orquestra moderna, por exemplo, é resultado de alta tecnologia. Um violino é um instrumento, isto é, uma ferramenta. (…) O uso de uma tecnologia pode enriquecer a psique humana, ampliar o espírito humano, intensificar sua vida interior. A escrita é uma tecnologia ainda mais profundamente interiorizada do que a execução de um instrumento musical. Mas, para compreender o que ela é – o que significa compreendê-la em relação a seu passado, à oralidade -, o fato de que ela é uma tecnologia deve ser encarada com honestidade.” (ONG, 1998, p. 98-99).

             A escrita obteve meios para o seu desenvolvimento. A imprensa foi responsável pela sua divulgação, assim como tornou a escrita acessível para uma maior quantidade de pessoas. É importante destacar a Reforma Protestante, que ao desafiar o poder da Igreja Católica nas primeiras décadas do século XVI, passa a contar com a escrita para divulgar sua opinião sobre o poderio da Igreja, sua corrupção e falta de ética de alguns membros do alto clero. Um belo exemplo são as 95 Teses de Lutero, que foi afixado na porta da igreja de Wittenberg, simbolizando um manifesto público. Martyn Lyons comenta que “el protestantismo era la religión del libro. (...) Los líderes protestantes creían que todos los cristianos debían tener fácil acesso al mensaje de la Biblia. (LYONS, 2012, p. 93). Aumentando um número de leitor, aumentaria certamente a quantidade de publicação de livros, consequentemente a escrita acabava tendo uma importância maior.

A escrita que liberta e revoluciona, também exclui. É o caso dos “analfabetos (os quais constituíam a grande maioria da população) tinham apenas a possibilidade de recorrer a vozes e figuras para se expressarem autonomamente, ainda que, e mesmo assim, tal não obstasse a que, (...), tivessem um acesso e um contato cada vez maiores com o escrito” (BOUZA, 1999, p. 115). Mesmo sem serem leitores, os analfabetos tinham contato com a escrita. Não desejando cometer o pecado do anacronismo, percebemos que os analfabetos do século XXI, convivem com a escrita, é conhecedor do mundo digital, e mesmo assim, vivem e seguem normalmente suas vidas.      

Por outro lado, está se desenvolvendo uma mudança na maneira de expor a escrita. Em uma entrevista cedida a revista Valor Econômico por telefone em abril do ano passado , o historiador francês Roger Chartier, destaca as novas formas de leitura fragmentadas que a sociedade atual está se acostumando na tela do computador, comenta sobre o desafio de encarar esta tecnologia como aliada da escrita e como formadora de novos leitores. Roger Chartier orienta que “a grande novidade me parece ser que o fragmento não está mais necessariamente vinculado ao todo. A leitura descontínua não busca essa relação. E a consequência é que todos os conceitos que associamos com a leitura, com o livro de filosofia, o de história etc. estão desafiados pela tecnologia eletrônica”.

              Concluímos que a cultura escrita sofreu perseguições nos seus primeiros passos. A escrita foi extremamente importante para as transformações sociais ocorridas ao longo dos tempos, sua utilização foi revolucionária para a humanidade. Tem importância incalculável, entre as criações humanas, é extraordinária. Uma armadura chamada escrita, que protegeu e registrou para a história o conhecimento e as ações dos homens.

1. Texto apresentado no trabalho da disciplina Cultura escrita e Pesquisa histórica do Programa de Pós-Graduação em História – UFAM.

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