segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Porra é com "dois r" professor?*

(Luciano Roberto)

     

    Detesto levar meus alunos para enfrentarem a direção da escola. São poucas as vezes que levei algum aluno problemático para que houvesse interferência do(a) pedagogo(a) neste meus dezesseis anos de magistério.
     
     Na minha opinião, o professor que leva o seu aluno para as mãos da direção da escola, acaba sem perceber, criando provas contra a sua falta de perspicaz em solucionar seus próprios problemas em sala de aula. Claro que há casos e casos! 

     Guardo em minha memória um desses casos. Seu nome: Rogério.
     
   O Rogério era um garoto com faixa etária acima dos demais alunos do 3º Ano do Ensino Fundamental da  Escola Municipal Roberto dos Santos Vieira. Tinha 10 anos, enquanto que os demais alunos tinham 8 anos de idade. Parecia ter saído das estórias em quadrinhos do incrível cartunista Maurício de Sousa.

     Certamente que todos já ouviram falar do Cascão. Criança esperta, amigo fiel do Cebolinha, nos momentos bons e nos momentos de coelhadas, que não gosta de tomar banho. Pois bem, o Cascão perto do Rogério era limpíssimo.

     O Rogério morava com seu avô. Um senhor de idade avançada que tinha como sustento, produzir carvão. Morava numa casinha bem humilde de palafita. O piso era de barro batido. O banheiro ficava no quintal, tinha paredes de palha, um enorme buraco, sobre a fossa algumas tábuas. Literalmente poderia se defecar e ouvir o barulho das fezes ao tocar no fundo do poço.

     Havia também o vira-lata "Olho fundo". O cão era tão magro que mal se aguentava em pé. Vivia nos braços do Rogério. Dormia no colchão encardido com o menino. Os dois eram como unha e carne, quase não se largavam. Rogério ia para escola, Olho fundo ficava esperando no portão.

     Na sala de aula, o odor se espalhava, ou seria melhor, o fedor? Era uma mistura de cheiro de urina mais cachorro molhado e um bocado de coisas a mais que ninguém conseguia identificar. As outras crianças se afastavam do Rogério. Ele ficava triste, eu também. Centenas de vezes alertei o Rogério do seu problema. Falava para o avô. Mas não adiantava, quando era noutro dia, lá chegava o Rogério com seu cheiro inconfundível.

     Certa vez fiquei irritado. Não dava para suportar o cheiro ruim do Rogério. Então fiz a primeira de tantas outra bobagens que acabamos fazendo ao longo da trajetória docente: gritei com ele e chamei de "menino porquinho". Para piorar, a classe toda sorriu. E repetia:

     __Menino porquinho! Menino porquinho!...

     Ordenei que a turma parassem de repetir aquelas palavras. Enquanto falava com os alunos, o Rogério escreveu a palavra "PORRA" bem grande e nítida no braço da sua carteira. Olhei para ele e perguntei:
     
     __O que é isso rapazinho? Com o tom de voz áspera.

     Rogério respondeu com outra pergunta:
     
     __ Porra é com "dois r" professor?

     Foi a gota d'água. Peguei no braço do Rogério e levei ele para a diretoria. Estava farto!

     Naquele dia saí da escola exausto. O turno era matutino e eu deveria seguir para outra escola no vespertino. Não fui. Peguei o ônibus e fui direto para casa. Antes de chegar em casa, parei no bar do Seu Renato e tomei um porre. Talvez um dos piores porres que já tenha tomado.

     O remorso havia invadido a minha alma. O Rogério era analfabeto, e a primeira palavra que ele havia escrito corretamente, em vez de receber um elogio, foi castigado.

     Poderia ter feito assim pensei durante a minha embriaguez:

     __Muito bem Rogério, a palavra "PORRA" é escrita com "dois erres". Mas ela não pode ser dita por um menino bacana como você... ou poderia ter dito... não sei...

     No outro dia fui para escola, ia resolver tudo com o Rogério, mas ele não estava na fila com os demais alunos. Entramos na sala, todos sentaram-se. Dirigi-me até a sua carteira. Estava vazia, e sobre o braço dela, estava escrito "PORRA", corretamente com os "dois r". 


*A história acima é uma ficção com algumas doses de realidade.

     

   

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